Ética
Platão e Aristóteles
O Nascimento da Filosofia Política
Marisa da Silva Lopes
José Carlos Estêvão
1.1. Ética e política na Antiguidade
1.1. Ética e política na Antiguidade
Tanto a ética quanto a política, tal como as concebemos hoje, nasceram nas cidades gregas, entre os séculos VI e IV antes da era corrente. Não é por acaso que ainda as designamos com palavras gregas: ética vem do grego ethos (algo como “costumes”) e política de polis (algo como “cidade”).
Ora, “costumes” e “cidades” são muito mais antigos do que isso. O que há, pois, de tão peculiar na concepção grega daquela época que pôde marcar indelevelmente as nossas formas de pensamento?
Certa concepção de igualdade, de isonomia. As cidades gregas eram escravistas. A escravidão era comum e muito antiga, mas, em geral, se diluía em formas muito variadas de servidão, que comportavam a composição dos mais diversos graus de servidão e liberdade: mesmo os mais poderosos eram servos em relação ao rei (qualquer que fosse o título que tivesse). Nas cidades gregas, ao contrário, houve uma contraposição polar entre livres e escravos. E os homens livres eram considerados iguais como absolutamente livres em contraposição aos escravos, também iguais em sua absoluta privação de liberdade (cf. VERNANT, 2002; 2005; VERNANT; VIDAL-NAQUET, 2008).
Tal concepção de igualdade se exprime de maneira mais clara na reforma política das leis da cidade de Atenas feita por Sólon em fins do século VI a.C. Entre muitas outras mudanças, como a extinção da pena de
escravidão por dívida, Sólon misturou todos os clãs, famílias e posições sociais (comerciantes e marinheiros, donos de terra e arrendatários etc.) e os dividiu e reagrupou por sorteio. Por sorteio porque se todos são iguais não há nenhum critério para distinção. Os novos agrupamentos assim criados formavam algo como “distritos eleitorais” – muito heterogêneos do ponto de vista social – que elegiam ou sorteavam, dependendo da situação, aqueles que deveriam ocupar, por turnos, as funções de direção da cidade, além de participarem todos da assembleia, a verdadeira governante da Atenas democrática (cf. MOSSÉ, 1982; 2008).
Como se vê, essa ideia de igualdade está muito longe de sua concepção moderna, segundo a qual “todos os homens nascem livres e iguais”. O cidadão pensado pelos gregos é igual porque e enquanto é livre. E são homens, no sentido estrito do termo: mulheres e crianças estão excluídas (assim como, em geral, os que não nasceram na cidade).
No entanto, malgrado sua falta de generalidade, a noção de igualdade teve um impacto extraordinário tanto na vida grega de então quanto na história do pensamento ocidental.
Em primeiro lugar, as muitas cidades gregas reivindicavam sua autonomia, seu poder de se autogovernar. As formas de governo escolhidas variavam quase de caso a caso, embora pudessem ser agrupadas em regimes de tipo monárquico (com um ou dois governantes), de tipo aristocrático (com um grupo de governantes), e de tipo democrático (com todos governando por meio da assembleia). Ainda assim, independentemente de qual fosse o regime, o pressuposto da igualdade em que se baseava a autonomia era suficiente para obrigar a um uso do poder diferente do tradicional. Aos inferiores, servos ou escravos, se dá ordens. Aos iguais, não. Não há, sobre aqueles que são iguais, nenhum poder superior: nem rei, nem patrão, nem deus. Com eles se devem apresentar as razões pelas quais se ordena, deve-se argumentar para convencê-los. E quanto maior o número daqueles que participavam do governo da cidade, mais intensa e refinada se fazia a necessidade de
argumentação.
Questões:
1. Qual é a origem das palavras "ética" e "política" e por que elas são associadas às cidades gregas?
2. Qual é a concepção de igualdade presente na reforma política de Sólon em Atenas e como ela se expressa na estrutura política da época?
3. Como a ideia de igualdade na Grécia Antiga influenciou tanto a vida política da época quanto a história do pensamento ocidental?
1.1. Ética e política na Antiguidade - Parte II
Enquanto as formas tradicionais de concepção do poder podiam ser representadas por metáforas como a do rei como pastor que conduz seu povo, ou como jardineiro que o faz florir (ambas mantendo uma diferença de qualidade entre o governante e os governados), a metáfora por excelência do poder entre iguais é a do círculo cujo centro, equidistante de cada um dos pontos da circunferência, está vazio e é ocupado sucessivamente por cada um dos que delimitam a circunferência.
Tal foi, de modo exemplar, o caso do regime democrático de Atenas. Começando pelo exercício da justiça e indo até mesmo à determinação das táticas de batalha na guerra, tudo era debatido e resolvido pela assembleia dos cidadãos (e pouco lhes importava que os espiões inimigos evidentemente assistissem à deliberação). Os homens que governaram Atenas foram, antes de tudo, grandes oradores.
A eliminação da referência à autoridade exterior entre homens iguais e a necessidade de argumentar com todos os demais deu nascimento a novas formas de pensamento, dentre as quais a mais influente historicamente foi a Filosofia, e, nela, a Ética e a Política, tais como as concebemos desde então.
A passagem das formas tradicionais de autoridade para o novo exercício da cidadania foi um parto doloroso (VERNANT; VIDALNAQUET, 2008). É o que mostra a tragédia grega, pondo em cena o conflito entre a lei e a moral tradicionais e as leis e a nova moral da cidade, como ocorre, de modo exemplar, na peça de Sófocles, Antígona: quando Creonte, rei de Tebas, ordena, em nome das leis da cidade, que o corpo do irmão de Antígona fosse deixado sem sepultura, ela, apoiando-se nas tradições, confronta Creonte. Cada um a seu modo tem boas razões a apresentar. Mas como elas decorrem de códigos opostos, cujos fundamentos não podem nem ser comparados, o embate torna-se mortal para todos os envolvidos.
De modo muito mais ameno, o mesmo faz a comédia, como quando Aristófanes, em As nuvens, põe em cena ninguém menos do que Sócrates, criticando impiedosamente os deuses tradicionais (“Não é Zeus que faz chover, são as nuvens, idiota!”) e apresentado como um sofista que pode ensinar a argumentação necessária para escapar da justiça, em particular, escapar dos credores. Embora ainda hoje a peça seja engraçada, parece-nos extremamente injusta com Sócrates, mas aponta com igual clareza o mesmo conflito entre a tradição e as novas concepções. O que não teve graça nenhuma é que, na realidade, como se sabe, Sócrates terminará sendo condenado à morte sob a acusação de desrespeito aos deuses. O conflito se mostra tão dilacerante que também a comédia termina em tragédia.
Ambos os elementos, certo “desrespeito aos deuses” e a possibilidade de argumentar contra a justiça decorrem igualmente do predomínio da argumentação entre iguais na Grécia de então.
Aristófanes põe na boca de Sócrates que “não é Zeus que faz chover”. É de todo improvável que justamente Sócrates sustentasse essa tese. Mas ela ilustra perfeitamente o esforço que vinha sendo feito então para compreender o mundo sem referência à autoridade, isto é, nesse caso, à autoridade dos mitos e da religião tradicional. Os “sábios”, chamados de sofistas, apresentavam razões pelas quais se pudesse compreender a natureza. Ou seja, fundavam o que veio a se chamar de Filosofia. Independentemente da referência aos deuses (ou da aberta refutação de sua existência), a grande diferença é que os deuses não eram o fundamento da argumentação: ela devia sustentar-se apenas nas razões que apresentava. Abria-se um capítulo novo na história do espírito humano.
Alguns sábios, como Tales ou Pitágoras, Parmênides ou Heráclito, dedicavam-se ao conhecimento racional da natureza (historicamente, nós os batizamos de “pré-socráticos”), outros, aqueles que tornaram o nome “sofista” um insulto, dedicavam-se a saber bem argumentar. Ora, se minhas demandas judiciais dependem da capacidade de argumentação (e não do beneplácito de um rei, fosse ele sábio ou não), é bastante provável
que eu me veja levado a contratar, mesmo que custe caro, alguém, um especialista, que argumente por mim. Quanto mais desesperada minha causa, quanto mais ela se afasta da justiça, mais premente se faz o auxílio do especialista e mais cara a tarefa. Não é difícil imaginar como em tal situação houvesse quem se oferecesse para defender qualquer causa, fosse ou não justa. Daí que a palavra “sofisma”, o argumento do sofista, veio a significar “argumento falso”.
Na realidade, esse é o retrato pintado pelos adversários dos sofistas.
De fato, os sofistas sabiam argumentar e ensinar a argumentar. Os poucos exemplos textuais que chegaram até nós, como o Elogio de Helena, de Górgias, são impressionantes. Protágoras, o mais importante deles na época de Sócrates, merecia o respeito mesmo de Platão, que dá seu nome a um de seus diálogos. E eles também sabiam argumentar em defesa própria. Não há, diziam, algo que seja a verdade. Tudo é relativo ao modo como nos aparece: “o homem é a medida de todas as coisas”, é a boa retórica que determina o que é bom e justo ou mau e injusto.
Se confinadas às pendências jurídicas dos cidadãos essas teses já causavam mal-estar, na condução da assembleia que governava Atenas pareciam, para alguns, catastróficas. Um bom orador era perfeitamente capaz de orientar a opinião da maioria não em defesa dos interesses da cidade como um todo, mas de grupos ou indivíduos, em defesa de interesses menores. Pior ainda, com o intuito de manter seu prestígio, o sofista tendia a ajustar-se à opinião da maioria, a se fazer seu porta-voz, sem se perguntar se a opinião majoritária era ou não a melhor para todos.
Ou seja, tornava-se um demagogo e fazia da democracia demagogia, termo que significava “conduzir o povo”, mas que veio a significar justamente a falsa direção.
Imagine-se a dificuldade que teve Temístocles para convencer os atenienses a escolher a perigosa estratégia de abandonar a cidade e embarcar, sem nenhuma retaguarda, numa batalha de vida ou morte contra os invasores persas. O demagogo teria preferido contemporizar com o medo que a maioria sente e defender estratégias menos assustadoras, mesmo que estas colocassem em risco a sobrevivência de Atenas. O contrário do demagogo é o phronimos, isto é, um homem “prudente”, que sabe reconhecer o que é melhor para todos, mesmo que o remédio seja amargo. O phronimos por excelência foi Péricles, virtual governante de Atenas por quarenta anos (MOSSÉ, 2008). O demagogo, ao contrário, afaga os desejos da multidão; sua retórica busca antes mover as paixões da maioria do que esclarecer a razão de todos.
Aristófanes chama Sócrates de sofista. Mas Sócrates dizia não poder aceitar o título de “sábio” porque, afinal, a única coisa que sabia era que não sabia nada. No máximo, poderia ser chamado de “amigo da sabedoria”, isto é, de filósofo. Como não sabia nada, não podia receber alunos e ser remunerado por eles, como faziam os sofistas. Nem defender causas alheias. Mas era um “amigo da sabedoria” porque se dedicava a buscar conhecer racionalmente. Não os mistérios da natureza, como seus antecessores (pouco lhe importavam as causas da chuva), mas os procedimentos dos homens. Interrogando seus interlocutores sobre temas como a justiça ou a coragem, praticava o que viria a ser conhecido como Ética e como Política.
Questões
1. Qual é a metáfora por excelência do poder entre iguais mencionada no texto e como ela contrasta com as formas tradicionais de concepção do poder?
2. Como o texto descreve a passagem das formas tradicionais de autoridade para o novo exercício da cidadania na Grécia Antiga?
3. Qual é o conflito central apresentado na tragédia grega Antígona, de Sófocles, e como ele reflete a transição ética e política na sociedade da época?
4. Qual é o papel dos sofistas na Grécia Antiga e como suas habilidades de argumentação influenciaram a democracia ateniense?
5. Como Sócrates se distingue dos sofistas em relação à sua abordagem filosófica e ao seu papel na busca pelo conhecimento racional dos procedimentos humanos.
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